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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Fragmentos sobre o corpo

Dialética do esclarecimento é também, de certa forma, um livro sobre o corpo, e não é surpreendente que assim seja, visto que a modernidade é uma experiência histórica que, para o bem e para o mal, o coloca em primeiro plano. É o corpo de Ulisses, tomado como protótipo do sujeito racional nos primeiros capítulo e excurso, que precisa ser controlado por um ego que procura identificar-se consigo mesmo ao enfrentar os mitos que encontra em sua Odisséia - mitos que são expressão da natureza ameaçadora, tanto externa quanto, principalmente, interna, o corpo e seus desejos. É identificando uma cicatriz, marca corporal que eterniza a recordação da dor, que Penélope, a esposa, reconhece Ulisses quando, depois de duas décadas, o comandante do navio está de volta à Ítaca. Somático é o sofrimento que acomete a cada um que persegue, na identificação com o agressor, a moral burguesa, como se lê no segundo excurso, dedicado ao tenso diálogo com Sade, Nietzsche e Kant. Corporal é o domínio político e cultural que a civilização moderna impinge aos que torna (não) sujeitos (da história, à história) sob o signo da indústria cultural e do totalitarismo político, como se pode aprender na leitura dos capítulos dois e três do livro de Horkheimer e Adorno.

Mas é nas notas e esboços finais que encontramos, junto a outros, um instigante apontamento que nos dirá sobre um Interesse pelo corpo. Segundo se lê logo em seu início, "Sob a história conhecida da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e das paixões humanas, recalcados e desfigurados pela civilização." (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 215-6; 1997: 265).

No pequeno texto aparecem muitas das questões que perpassam não apenas o livro, mas as Obras de seus autores. Uma delas é a violenta cisão entre cultura e natureza. Foi esta cisão do humano que, como antes comentado, dota-se de uma racionalidade cuja expressão subjetiva simultaneamente supõe e procura o domínio de si. Essa ruptura, imprescindível para a sobrevivência da humanidade tal como se desenvolveu ao longo de nossa história, se realizou por meio da repressão pulsional e da exigência de um constante adiamento das gratificações. Essa reivindicação do processo civilizador - que é a do esquecimento da natureza que há em cada um de nós - se demarca pela renúncia e, portanto, pelo mal-estar, tal como Freud (1994) já descrevera.

Esse movimento traumático, de um sentimento não racionalizado de injustiça pela não restituição de algo perdido, ficaria, como afirmam Horkheimer e Adorno (1997, 1985), sempre à espreita, impulsionando uma obscura procura de vingança pela humilhação sofrida silenciosamente. Esse impulso teria como desiderato a instituição de uma relação patológica do humano com o corpo - seu e de outrem, um amor-ódio pelo corpo já vislumbrado na figura de Ulisses, que não apenas domina a si mesmo, ao proteger-se na renúncia frente às sereias, ao amarrar-se ao mastro do navio, mas também os corpos de seus marinheiros, cujos ouvidos foram tapados com cera para que em nada do encantador cântico que embriaga e faz perecer desfrutassem.

A dubiedade nada balsâmica dessa relação se radica no fato de que o corpo é a expressão do cruzamento entre cultura e natureza, resultado do embate que faz com se exija que ele seja incessantemente controlado, ao mesmo tempo em que, justamente como natureza não inteiramente domada, torne-se também, lugar de desejo que é, um momento utópico de reconciliação.

O controle se "enobrece" pela ética do trabalho, visto como medida de ascese. A sensação de logro e mal-estar logo se deixa transparecer, por exemplo, na separação entre trabalho e não-trabalho, tempo visto como livre mas que, como pontuará Adorno (1997b), ainda está, na ordem capitalista, por encontrar a liberdade. O "lazer" permanece no círculo infernal do mito, seja como parte dos esquemas da indústria cultural ou como escárnio dos que não precisam vender sua força de trabalho por aqueles que assim o fazem - que são os mesmos de quem dependem para desfrutar do ócio.

Para Horkheimer e Adorno o desejo de progresso que autoriza a humilhação subterrânea do corpo ao tomá-lo como um objeto irá, de modo aparentemente paradoxal, exaltar esse mesmo corpo na medida em que se deslumbra a possibilidade daquele se tornar a expressão encarnada do progresso. Esse enaltecimento do somático, entretanto, nada mais fará do que perpetuar a relação de reificação outrora já estabelecida. Qualquer apelo retrospectivo, romantizado, estaria fadado, no entanto, a recair na mitologia passadista: "Não se pode mais reconverter o corpo físico (Körper) no corpo vivo (Leib). Ele permanece em cadáver, por mais exercitado que seja. A transformação em algo morto, que se anuncia em seu nome, foi uma parte desse processo perene que transformava a natureza em matéria e material." (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 218; 1997: 267).

A incessante promessa de reconciliação com a natureza encontra no artista aquele que primeiro exaltará os fenômenos vitais como meio de encontro com a perdida unidade do corpo (Leib) e da alma, mas será a propaganda totalitária - na "política", como expressão perversa nos esquemas da indústria cultural - que utilizará essa pretensa possibilidade para, ao contrário, afastá-lo de sua unidade quando o potencializa, promovendo a falsa reconciliação pelo solapamento do ego. É nesse movimento que os Autores apreendem a perpetuação do ideário fascista de produção de um tipo humano "superior", contraposto à "anti-raça" que deve ser exterminada, os judeus. Podemos ver como isso se atualiza contemporaneamente se atentarmos para a recorrente veiculação dos modelos de beleza e saúde a serem seguidos.

O que se coloca em jogo nos destinos do corpo e da razão é não apenas o fato de serem outros entre si, mas de expressarem, como utopia, a felicidade: desejo e razão, imaginação e cálculo como promessas a se realizarem contra o medo, inclusive aquele que afronta quando da presença das criaturas miméticas, frágeis, incertas, corpos hesitantes a cambalear. Mas então é preciso retomar a crítica mais severa, aquela que Horkheimer e Adorno destinaram à razão como principal tarefa que ela ainda pode pretender cumprir, a de ser autocrítica, de colocar-se a serviço, dentro mesmo de seus domínios, da condenação da sanha que faz triunfar o mito.

Fonte:http://www.efdeportes.com/efd116/fragmentos-filosoficos-sobre-o-corpo.htm

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